sexta-feira, 4 de maio de 2012

Cinza.


       (Ler ouvindo Passerà - Renato Russo)

Se existe algo mais triste do que sofrer, sem dúvida nenhuma é não sofrer. Não sentir, não ter qualquer espirro de afeto ou desafeto ou de qualquer coisa. Não sentir é de um tédio que nunca acaba. As pessoas tem todas a mesma cor, cinzas. Elas aparecem na minha frente como num circo, fazem sua apresentação e saem. Cinzas. As vezes meia dúzia de palmas, bocejo, um sorriso de canto, bocejo. Sono. De noite, o sono desparece, parece que quando estou sozinha as pessoas fazem sentido, lá longe. Elas tem graça, tem charme, tem potencial. Mas de perto... puft. Some tudo, fica tudo cinza, tudo sem graça, tudo sem cor. Elas falam e o som parece sempre o mesmo. Barulho. Eu aceno com a cabeça e concordo. Discutir causaria mais barulho. A indiferença nos eleva a um plano externo da vida comum. Uma vida dupla, quase. O corpo e a mente vivem em paralelo. Enquanto o corpo convive com tudo, concorda, respira, anda, até conversa as vezes. A mente enxerga tudo isso com repulsa, com vertigem. Enxerga de muito distante, como se não quisesse ao menos chegar perto desse cinza todo. A família a gente até revela, tem toda aquela coisa que a gente aprende desde criança. Respeito, eu acho. Mas não chega perto de ser sentimento. Nem perto. Os homens tem aquele mesmo cheiro, todos. Cheiro de carne, cheiro de açougue. Muda o tamanho, a raça, o jeito, o tom de voz, as vezes. Mas a ladainha é sempre a mesma. Amor, amor, amor, amor. Acho graça quando falam de amor. A mesma graça que eu achava quando meu avô vinha me contar aquelas histórias folclóricas, que ele ouvia na infância dele. Acho que é isso mesmo, amor é igualzinho folclore. A gente escuta falar desde pequena, quando cresce vê que não é nada daquilo, mas não consegue desacreditar completamente. Eu nunca acreditei. Nem em folclore, nem em amor. Acho que esse é meu problema. Nunca acreditar em nada. Lembro do meu avô dizer que metade do folclore precisa que a gente feche os olhos e acredite. A outra metade é verdade, ele jurava. Eu fecho os olhos, abro com medo de achar tudo colorido em volta e a vida continua cinza. Meu avô não era cinza, ele era branco. Tinha os olhos bonitos, de quem já olhou muita coisa. Até que chegou um dia, que ele fechou os olhos, não abriu mais e ficou cinza também. Ficou igual a todo mundo. Ele dizia que eu era a menina mais sensível que ele já tinha visto. Una ragazza sensibile. Acho é que ele estava certo. Todo mundo tem a mesma sensibilidade que ele, depois que ficou cinza. Sensibilidade nenhuma. E se ninguém sente nada, o que eu sinto é o reflexo desse vazio. Alguém que sente o vazio é mesmo alguém sensível demais, piccolina. E aonde Deus entra nisso, vô? Sei lá, vai ver ele ficou cinza também.

5 comentários:

  1. Gosto do cinza, é 'mistura' do branco e preto, luz e trevas, bem e mal, vida e luto... Não sentir, é sentir a falta de sentir. É pensar e sentir ao mesmo tempo.

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  2. Belo texto, apesar de ter lido só até o 5º parágrafo gostei :)

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  3. belíssimo texto, apesar de td ter ficado cinza...

    bjksssssssssss

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  4. Concordo ali com o Luan Spartacus, pois gosto també, de cinza e acho que seria a cor ideal para tantos no mundo. Acho que se não sofrer as vezes faz sentir algo também, nem que seja algo não descoberto.

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  5. E depois de olhar bem... De admirar tudo em volta... As coisas voltaram a ter suas cores...

    Texto lindo...

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